Com a criação da web, nos anos 90, dizia-se que o conteúdo, de modo geral, era o elemento mais importante das mídias digitais. “Content is king”. As estratégias de mídia giravam em torno da produção de conteúdo e da sua distribuição. O conteúdo continua importante, mas é cada vez mais criado e distribuído em torno de interesses e necessidades personalizados de seus clientes.

Em programas de televisão, rádio, jornais impressos e online, revistas impressas e online, websites, blogs, mensagens de e-mail, o conteúdo noticioso ou comercial (de vendas e divulgação de produtos) online era, e continua sendo, reformatado para veiculação em diversos canais, segundo diversos modelos editoriais. Ao seu redor, em diversos formatos, girava o universo de canais no início da difusão da web comercial.

Depois, o número de canais se multiplicou, passou a incluir vídeos, podcasts, redes sociais, aplicativos, plataformas, e o conteúdo em diversos formatos continua tendo importância estrutural no universo de canais, mas hoje o que circula no universo midiático é diferente: a comunicação entre quem publica e quem consome não é mais unidirecional, não flui apenas dos canais de produção para o público.

Com canais que facilitam a manifestação de opiniões e respostas, os processos de comunicação transformaram-se em diálogos, fluxos entre produtores e receptores. E como quem antes era apenas receptor agora, potencialmente, também produz conteúdo, pelo menos tem canais para isso, deixa de ser receptor e passa a ser agente.

Foco no público

A inteligência de análise de dados está ajudando os produtores de conteúdo a chegar com mais eficiência a cada indivíduo. Algoritmos aprendem e classificam preferências pessoais, desde os filmes do YouTube, da Netflix, posts nas redes sociais, às músicas selecionadas no Spotify ou os produtos das lojas ou de resultados debuscas.

Para tornar o conteúdo mais útil e se manter em expansão, editores, designers, especialistas em experiência do usuário e desevolvedores combinam esses dados sobre os comportamentos dos usuários com técnicas para influenciá-los e persuadi-los a passarem mais tempo em seus seus canais, em ciclos contínuos que lhes permitem coletar mais dados.

O The Intercept teve acesso a um documento em que o Facebook oferece um serviço de publicidade que aprofunda a venda de informações de usuários para empresas: em vez de fornecer um serviço de direcionamento de anúncios com base em dados demográficos e preferências de consumo, a rede social oferece a possibilidade de segmentar seu público-alvo com base no comportamento, nos hábitos de consumo e nos posicionamentos futuros dos usuários. Isso é possível graças a um software de previsão que usa inteligência artificial capaz de evoluir sozinha, lançado pelo Facebook em 2016 e batizado de “FBLearner Flow”.

O universo midiático de múltiplos canais, com diversos objetivos editoriais, sociais, comerciais, tem seu eixo deslocado para os usuários. A produção de conteúdo fica centrada não em torno do conteúdo em si, mas de cada pessoa que o acessa. Ou, mais especificamente, em torno dos diálogos entre cada pessoa, seus pares e os canais que acessa.

Além de fluírem nos dois sentidos, as relações entre os canais e as pessoas do público mudam, porque o eixo de poder muda. O autor e o canal pelo qual a autoria de conteúdo flui deixam de ter a autoridade que o acesso à publicação do canal lhe garantia, ou seja, não é mais suficiente deter o acesso aos canais de autoria e publicação (porque, de forma geral, qualquer pessoa tem condições de publicar conteúdo online, e mesmo nos canais offline e eletrônicos, essa publicação é cada vez mais acessível).

O autor de conteúdo e a “autoridade” do canal que o publica passam a ter importância pela qualidade de seus relacionamentos. A autoridade do autor e do canal se estabelece mais por sua legitimidade ao atender os desejos, anseios, expectativas, opiniões das pessoas do público. Se estabelece menos a priori, pela marca comercial pré-estabelecida, do que por uma liderança consentida no dia a dia do relacionamento entre pessoas.

Na medida em que cada pessoa pode publicar o conteúdo que produz e mostrar publicamente sua opinião, mesmo que se resuma a uma curtida ou a um seguimento para textos e imagens de seus amigos, essa pessoa deixa de ser receptora e passa a potencial agente em seu ambiente cultural, social, comercial. Ganha poder o indivíduo para si mesmo, não isolado, mas em seu contexto. O que não quer dizer que não continue como unidade em muitos conjuntos amplos de pessoas (leitores, espectadores, usuários, consumidores, colaboradores, profissionais), que geram informações utilizadas para moldar e dirigir sua opinião e suas ações.

Mesmo como parte de conjuntos modelados de grandes quantidades de dados, cada indivíduo de um segmento de público tem potencialmente mais importância do que quando fazia parte dos dados das empresas de comunicação de massa. A interlocução com os agentes de autoria e os canais de publicação se voltam para ela/e.

O conteúdo para o público balizado por seu valor relacional direto e indireto (interlocuções com pessoas não diretamente relacionadas a seu contexto) se adapta às múltiplas possibilidades de relacionamento – pela formatação, pela edição, pelo posicionamento, pela construção de linguagem. Nesse universo editorial coletivo (relativo ao conteúdo produzido e em circulação) e informacional (relativo aos dados que gera), praticamente todas as pessoas e empresas são autoras e publicam conteúdo. E também disputam os relacionamentos interpessoais, bem como os benefícios (e possíveis malefícios) decorrentes dessa publicação.

Mudanças qualitativas no conteúdo centrado em usuários

À medida em que cada vez mais é produzido para criar e manter relacionamentos, o conteúdo editorial e comercial publicado em diversos canais se adapta a novos ambientes, e

É relevante para seu público, em contexto, atende suas demandas e expectativas. A relevância se estende à facilidade de localização em buscas, por meio de termos ou palavras-chave que o público-alvo utiliza frequentemente.

É personalizado, na medida do possível, embora a personalização seja regida por critérios comerciais. A resenha sobre um produto feita por um usuário de produto relata uma experiência pessoal que pode favorecer a disseminação dessa imagem para outras pessoas com mesmo perfil. O atendimento a dúvidas e perguntas do público também procura criar relacionamentos.

Pode ter a participação de outras pessoas do público na publicação. Muitas vezes um acontecimento que acabou de acontecer é complementado por perguntas, comentários, depoimentos, fotos e vídeos enviados por outras pessoas.

Permite integração quando publicado em diferentes canais. O conteúdo publicado sobre um produto no site da empresa que o produz se relaciona ao publicado sobre o produto em sites de vendas e em redes sociais. Para o leitor que entra em contato com o produto pelas ferramentas de busca, sua imagem se mantém consistente e confiável.

Demonstra alinhamento institucional de conteúdo de mesmo contexto. Não há (ou não deve haver) contradições entre informações publicadas em diferentes canais, a não ser que atribuídas a um autor ou pessoa do público cujos pontos de vista sejam divergentes.

É facilmente disseminável em canais de relacionamento, como redes sociais. O tamanho dos textos e das imagens facilitam a disseminação, bem como a linguagem coloquial e a ausência de termos de uso restrito.

Pode (ou deve) também ser facilmente reutilizável, como decorrência da disseminação, passando facilmente de um site para uma plaataforma como Facebook, WhatsApp, Twitter, ser enviado por e-mail.

Pode ser facilmente monitorado por ferramentas multicanais e ser analisado com visão integrada em relação a um conjunto. O aumento de tráfego na internet sobre um produto está relacionado ao seu aumento de vendas? A quantos acessos está associada uma venda? A quantos acessos está relacionado um redirecionamento? Quantas publicações foram dissseminadas? Quantos clientes aderiram à mala direta a partir de uma campanha? Quantas pessoas reagiram posisitvamente a um post? A aquisição de palavras-chave aderiu aos termos de interesse do público? Como é o posicionamento em blogs e comunidades?

 Eventualmente pode mudar de acordo com a resposta dos usuários. A combinação adequada de narrativa e canal de acesso podem adaptar o conteúdo para uma pessoa.

Embora o conteúdo comercial e/ou editorial centrado em clientes e baseado na interlocução multidirecional seja sintoma de um empoderamento dos públicos de diferentes canais, esses públicos são também, como nunca, monitorados, medidos, têm seus dados pessoais cada vez mais conhecidos e disseminados pelos canais que o atendem e de que participam. Pergunta-se então quem na verdade está no controle, as pessoas do público ou as que detêm dados suficientes para estabelecer relacionamentos cada vez mais personalizados com essas pessoas?

A princípio, o público sai empoderado no universo multicanal, mas o empoderamento precisa incluir a transparência dos processos de monitoramento, o que precisa ser bastante aperfeiçoado.

Especialistas consultados pelo The Intercept afirmam que os sistemas descritos no documento [de venda de informações sobre os usuários para empresas] levantam uma série de questões éticas, como o uso dessa tecnologia para manipular usuários, influenciar eleições ou favorecer empresas. Segundo Tim Hwang, diretor da Ethics and Governance of AI Initiative, das universidades de Harvard e do Massachusetts Institute of Technology, o Facebook tem a “obrigação ética” de revelar como está usando a inteligência artificial para monetizar nossos dados, embora seja do interesse da empresa manter essa tecnologia em segredo. “Contar às pessoas que seu comportamento pode ser previsto pode influenciar os resultados”, diz.

Outra questão a levantar sobre a democratização dos canais de publicação é o uso editorial de conteúdo comercial e de propaganda, antes restrito a veiculação como publicidade explícita. Vemos hoje a prática disseminada de conteúdo comercial como conteúdo informativo pelas grandes corporações comerciais, veiculado como informação neutra, mas de caráter persuasivo. Embora essa prática seja defendida em função da necessidade de informar o público, e em especial os consumidores, sobre produtos, exige do receptor uma recepção crítica permanente, para que se mantenha efetivamente como agente de suas decisões e ações. O que tende a não acontecer. Nem sempre o produto online centrado no usuário é baseado no bem-estar, na perpectiva humana e no livre arbítrio do público a que se dirige. É tarefa dos profissionais espacializados mantê-lo em aperfeiçoamento sob esta perspectiva.

(Publicado em 11.2.2018. Atualizado em 15.2.18)

 

Referências

Facebook usa inteligência artificial para prever o comportamento de usuário para anunciantes, Sam Biddle (The Intercept, acesso em 15.3.18)

How do emerging technologies affect the creative economy? Claudio Cocorocchia, Jonathan Dunn, Stefan Hall, e Ryo Takahashi (McKinsey – Media and Entertainment, acesso em 14.4.2018)