Uma estrutura de informações de canais cruzados é composta de elementos dispersos em vários canais de observação, leitura, ação, relacionamento, que se integram de maneira mais ou menos estruturada. Cada canal pode ou não oferecer um ponto de entrada completo no contexto estrutural, mas o conjunto dos elementos, cada um à sua maneira, compõe uma experiência conceitual coerente.

No século 19, o compositor alemão Richard Wagner defendia que as artes não deviam ficar isoladas umas das outras. Aspirava a uma “obra de arte total” (Gesamtkunstwerk), em que as linguagens da pintura, da música, da poesia, do teatro, convergiam para criar espetáculos completos e interligados. Para realizar projetos na perspectiva de diversas linguagens integradas, construiu em Bayreuth um edifício para encenar suas óperas, procurando unificar dramaticamente a música e a narração de histórias à atuação que acontecia no palco.

O teatro de ópera de Bayreuth

Desde a primeira Copa do Mundo, em 1930, com o aumento da difusão do rádio e das tiragens dos jornais impressos, a cobertura de grandes eventos acontece entre canais, embora tenha mudado diversas vezes de configuração.

Hoje os espectadores têm uma participação ativa na seleção e edição das informações. Pesquisa realizada durante os jogos olímpicos de Londres em 2012, mostrou que quanto mais plataformas eram usadas para acessar o conteúdo da NBC Olympics, maior era o envolvimento dos usuários. E a questão principal não é apenas o consumo do conteúdo: quem usava dispositivos móveis ficava mais tempo diante da TV e do PC. Pessoas que só assistiam a TV ficavam em média 4 horas e 19 minutos diante do aparelho. Nos segmentos que usavam vários dispositivos, o tempo subiu para mais de 6 horas. (2)

 Criada de 1999 a 2003, a trilogia de filmes Matrix gerou em torno de si uma experiência cross-channel com o lançamento paralelo de curta-metragens animados, coleções de histórias em quadrinhos e videogames. O espectador/leitor/jogador das peças isoladas não precisa fazer uma ideia do conjunto, suas experiências em cada um se completam: cada filme, história, game, tem um final que encerra o segmento, embora estejam todos dramaticamente interligados.

 Em março de 2014, o Facebook publicou um estudo que mostrava que 60% dos adultos conectados à internet dos EUA usavam ao menos dois dispositivos digitais por dia, quase 25% usavam três dispositivos e 40%começavam uma atividade em um e terminavam em outro. (2)

Obras e produtos cross-channel não são novos. O desafio que se coloca para sua produção contemporânea é o uso de mídias digitais em contextos de produtos criativos/produtivos, com estruturas de conteúdo e funcionais encadeadas, além de resilientes, dialógicas (com o público e entre si) e participativas.

Com tecnologias digitais em diversos tipos de interface integradas ao cotidiano, pensar as interfaces entre pessoas e sistemas, histórias, informações, produtos, é também pensar como clientes, usuários, participantes, espectadores, atravessam os dutos entre um canal e outro. Os universos informacionais, de serviços, criativos, contemporâneos integram concepções de experiências cruzadas online e offline.

Linguagens e conteúdo complementares

Canais cruzados podem ter diversos autores, diferentes tratamentos de linguagem, explorar as especificidades da internet, do vídeo, da TV aberta ou interativa, dos dispositivos móveis, interfaces de streamming, impressos, rádio, espetáculos, exposições, automóveis conectados. O trânsito entre canais demanda o envolvimento, explícito ou não, do público, que constrói experiências-síntese dessas interfaces eventuais (opcionais, assistemáticas) com alguns deles.

Produtos produzidos para canais cruzados podem envolver experiências com diferentes escopos. Henry Jenkins menciona algumas:

 Histórias cross-channel, em que uma lógica orienta o fluxo entre diversas mídias e permite o acompanhamento dos personagens e das situações em diferentes canais.

Marcas cross-channel (cross-channel branding), que integram a estratégia de colocação ou divulgação de produtos no mercado.

Performances cross-channel, que acompanham a criação de trabalhos de arte, teatro, dança em diferentes canais, como YouTube, iTunes, Netflix, performances presenciais com ou sem áudio e vídeo.

Rituais, peças teatrais, ações de ativismo, espetáculos cross-channel. (1)

O uso de diversos canais não implica propriamente a adaptação de uma situação para diversas linguagens, com redundância entre um e outro. Cada canal tem autonomia sobre as narrativas que veicula e as experiências que provoca, mas inclui aspectos complementares.

As histórias em quadrinhos de Guerra nas estrelas expadiram a sequência temporal dos filmes e desenvolveram personagens secundários. Os games não descrevem as mesmas situações dos filmes, mostram, por exemplo, como é a vida de um Jedi em treinamento.

Enquanto os episódios da série de TV Dawson’s Creek iam ao ar semanalmente, uma equipe de escritores atualizava um site que simulava o computador do personagem principal. Neste, era possível ler seus emails, diário pessoal, trabalhos escolares. O conteúdo se ajustava aos episódios, com dicas sobre o que viria a acontecer nos próximos episódios e alusões ao que tinha acontecido em episódios passados.

Para o projeto de canais digitais participativos, muitos produtores reconhecem que precisam expandir estruturas conceituais rígidas e centralizadas, abrindo caminhos para a lógica dos participadores, de modo que estes possam alterar, expandir ou recriar o modelo original.

Com esta perspectiva, sustenta-se uma ótica orientada à multiplicidade, em que os criadores originais detêm algumas experiências relacionadas aos produtos principais, entre as muitas que podem ser criadas por outras pessoas, espectadores, leitores, consumidores, jogadores, usuários.

Assim, quando um produto, especialmente um canal digital, é lançado com desdobramentos em outros, a ansiedade de que atenda de imediato às expectativas de toda a audiência ou de vendas, pode ser atenuada com a perspectiva de que o conjunto (ou sua imagem) estará de alguma maneira sempre incompleto e poderá ser aperfeiçoado a partir da interface com o público, com a incorporação de opiniões, informações, ideias.

Para que as pessoas se sintam parte do contexto, a experiência entre canais deve ser muito fácil, de preferência invisível, e começar com foco nos aspectos que o usuário/agente mostra mais interesse. Uma negociação entre o que o público quer e os canais demandam se mantém em todos os momentos de contato. Também se manifesta a tensão entre realizar bem os objetivos de cada usuário em um canal e criar a necessidade ou expectativa de passar para outro, de modo a continuar a experiência. Qual o limite de cada um? Qual o limite de envolvimento de cada pessoa?

O desafio de criar produtos entre canais, interconectados e com co-criadores anônimos, demanda o planejamento de experiências que se assemelham, por sua incompletude, a obras de arte. Obras de arte totais, como Wagner perseguia, recriadas pelos participadores/ criadores. A experiência do usuário não é controlada, e ainda provê recursos para que este a reinvente e expanda.

(Atualizado em 11.10.2017)

 

Referências

2) Finding simplicity in a multi-device world (Facebook for Business, acesso em 1110.2014)

Channel integration or channel maximization?, Shannon E. Denison (Click Z, acesso em 26.8.2014)

Delivering seamless cross-channel banking experiences, Jim Marous (Financial Brand, acesso em 20.5.2014)

2) Multi-platform media usage is not a zero sum game, Henry Jenkins (Confessions of a Aca-Fan, acesso em 25.3.2013)

1) Transmedia 202: Further reflections, Henry Jenkins (Confessions of a Aca-Fan, acesso em 25.3.2012)

Transmedia Storytelling 101, Henry Jenkins (Confessions of a Aca-Fan, acesso em 11.3.2012)

The revenge of the origami unicorn: Seven principles of transmedia storytelling (well, two actually. Five more on Friday), Henry Jenkins (Confessions of a Aca-Fan, acesso em 11.3.2012)

Livro: Pervasive information architecture, de Andrea Resmini and Luca Rosati. Burlington, MA: Morgan Kaufman, 2011

Cross-channel, cross-media, multi-channel: Where’s the difference, Andrea Resmini and Luca Rosati (Pervasive Information Architecture, acesso em 11.3.2012)

What is cross-channel (Andrea Resmini, blog, acesso em 11.3.2012)

The transmedia challenge: Co-creation, Donald Norman (JND.org, acesso em 11.3.2012)

Conceitos

Convergência – Segundo Henry Jenkins, em “A cultura da convergência” (São Paulo, Aleph, 2008), “define mudanças tecnológicas, industriais, culturais e sociais no modo como as mídias circulam em nossa cultura. Algumas das ideias comuns expressas por este termo incluem o fluxo de conteúdo através de vários suportes midiáticos, a cooperação entre as múltiplas indústrias midiáticas, a busca de novas estruturas de financiamento das mídias que recaiam sobre os interstícios entre antigas e novas mídias, e o comportamento migratório da audiência, que vai a quase qualquer lugar em busca das experiências de entretenimento que deseja. Talvez, em conceito mais amplo, a convergência se refira a uma situação em que múltiplos sistemas midiáticos coexistem e em que o conteúdo passa por eles fluidamente. Convergência é entendida aqui como um processo contínuo, ou uma série contínua de interstícios entre diferentes sistemas midiáticos, não uma relação fixa.”

Meios de comunicação – Segundo Henry Jenkins, em “A cultura da convergência” (São Paulo, Aleph, 2008), citando Lisa Gitelman, são “estruturas de comunicação realizadas socialmente, em que estruturas incluem tanto as formas tecnológicas quanto seus protocolos concomitantes, e em que a comunicação é uma prática cultural”.