Há pouco tempo fizemos o projeto de um website para uma pequena comunidade rural da Amazônia e nos deparamos com a necessidade de adaptar a metodologia de projeto tanto para a linguagem dos clientes como para a linguagem do público final do canal.

Utilizamos a primeira pessoa do plural como referência à nossa equipe de projeto, externa. Como foi um processo de criação coletivo, todos os envolvidos foram coautores, portanto esta referência está relacionada aos agentes externos como mediadores, ou propositores de caminhos para obter os resultados coletivos.

Precisamos começar adaptando os processos correspondentes à imersão no projeto e seu contexto. Não tínhamos um planejamento prévio a ser aplicado, pois achávamos melhor fazer esta avaliação depois dos primeiros contatos presenciais com os responsáveis locais pelo projeto. Nessas primeiras conversas, vimos que a equipe de trabalho incluía 17 pessoas da comunidade, com perfis heterogêneos, nem sempre amigas entre si, de modo a facilitar a incorporação do canal digital ao dia a dia da população. As lideranças locais demandavam um canal que facilitasse a comunicação entre pessoas da comunidade e valorizasse a produção cultural e de bens locais.

A partir das conversas iniciais, pensamos na adaptação da linguagem do projeto e do produto ao contexto, de modo a incorporar o canal no dia a a dia das pessoas, tanto do ponto de vista individualcomo coletivo e profissional. Seguiu-se a necessidade de formalizar os primeiros passos e as metodologias de projeto.

O projeto coletivo, com a equipe completa, começou com a apresentação de algumas questões que seriam abordadas no projeto, como: por que é importante considerar a experiência do usuário, o que é usabilidade e arquitetura da informação – mostramos alguns exames de casos relacionados ao produto a realizar.

As pessoas envolvidas, a maioria usuários da web via celular e aplicativos, estavam familiarizadas com o uso de ferramentas digitais, e reagiam com familiaridade às informações. Também opinavam com segurança sobre suas demandas pessoais e coletivas. Mas percebemos que cada um entendia que sua experiência pessoal era extensível às funcionalidades e ao conteúdo do novo canal e apresentavam suas experiências como o modelo a implementar.

Experiências de uso de aplicativos e sites eram as referências de uso, desde botões com funcionalidades específicas, até os rótulos de botões, detalhes de layout, rótulos de links e funcionalidades observadas em diversos outros sites e aplicativos.

A partir da apresentação técnica inicial, nosso ponto de partida se delineou a partir de uma pergunta inicial: como o website poderia ajudar o dia a dia de cada um e, eventualmente como poderia atrapalhar. Esta pergunta incluía o entendimento dos objetivos do produto. Deixamos claro que não tínhamos as respostas para aquelas perguntas, que estas dependiam exclusivamente deles.

Demos um tempo para as pessoas refletirem individualmente e a seguir para fazererem suas proposições. O que resultou num conjunto de fragmentos de primeiras impressões, opiniões, sugestões. Convergiram nomes de rios, lugares, pessoas, animais, festas, pensamentos, sugestões, exaltação das paisagens, histórias.  Selecionamos em conjunto aquelas que foram consideradas mais importantes (por repetição e anuência) para o projeto e ficamos no final com um quadro que podíamos consultar com facilidade. Este conjunto foi considerado não só para o direcionamento do produto, mas como um universo semântico a ser explorado. Resolvemos usar essa diversidade como ponto de partida.

Foram consideradas aí todas as informações, inclusive opiniões divergentes, que não acompanhavam as da maioria, bem como as das pessoas pouco familiarizadas com o uso de ferramentas e terminologias de interfaces digitais, que priorizavam as questões mais humanas dos que funcionais. Procuramos evidenciar que os diferentes pontos de vista tinham importância para o resultado, com cuidado para identificar as opiniões que pareciam emergir apenas para discordar da maioria, sem objetivos práticos.

As unidades de informação, inicialmente registradas em post its que fizeram um quadro orientador conceitual do projeto, foram também transccritas para um quadro no miro, que servisse de referência para todos a qualquer hora.

No encontro seguinte, de trabalho propriamente dito, pedimos que sugerissem ideias que sintetizassem os objetivos, as necessidades que o site atendia, como poderia ajudar o dia a dia. Alguns expunham oralmente suas ideias, que escrevemos rapidamente também em post-its, outros escreviam direto nos post-its e assim fomos compondo um segundo quadro de ideias mais operacional, uma ferramenta que já refletia o resultado.

Este quadro de ideias começou a delinear também sugestões de conteúdo a ser publicado no site, além dos que já imaginávamos ser importante desde o primeiro contato para a elaboração do projeto. Os conceitos mostraram cenários, situações presentes no dia a dia dos usuários que iam além das necessidades funcionais de um web site.

Ao longo dessasreuniões e das subsequentes, procuramos alternar a mediação, para facilitar a expressão e a empatia das pessoas que se identificassem mais com um dos três mediadores.

Personas, ou pessoas

Em outra sessãode trabalho, para examinar como era o público do site, vimos que elaborar personas era mais ou menos como pedir aos integrantes dos grupos de projeto que descrevessem a si mesmos. Não havia necessidade estabelecer consenso neste sentido para eles. Fazia sentido para nós, de fora, para conhecermos melhor os perfis das pessoas.

Pedimos então que citassem outras pessoas da comunidade que iriam usar o site e que fizessem uma breve descrição de cada uma, se/como/quando usavam a internet, atividades, gostos. O resultado não foi exatamente um conjunto de personas, mas um conjunto de pessoas reais, conhecidas, que a gente podia encontrar na rua, o que nos permitiu, mais do que conhecer, estabelecer com elas laços de profundo entendimento.

Sob o ponto de vista metodológico, os perfis descritos não eram personas, porque não eram arquétipos simplificados, eram PESSOAS em si. Coube-nos fazer a simplificação desses perfis direcionada aos objetivos do projeto, com a aplicação de filtros para extrair requisitos para o projeto.

Para entendermos os contextos de uso do site, pedimos que exemplificassem como aquelas pessoas citadas usariam o site, em que lugar, que ocasião, para atender a que necessidade, como acessavam, se usavam com outras pessoas, como poderiam contribuir facilmente para o conteúdo, como gostariam de estar presentes no site (fotos, citações, histórias, conhecimento, participação em grupos, torneios, campeonatos, festas).

Assim, as jornadas dos usuários foram vistas a partir de circunstâncias reais, “Dona Jussara não vai acessar o site, tenho certeza, vi pedir pra filha para mostrar sua foto, a filha sim, vai postar muita coisa lá.” Então, como a filha acessava? Como suas fotos podiam aparecer no site? Para quem mostrava? Onde? Quando? Como as localizava?

As jornadas de usuários que se desenharam não descreviam etapas lineares, que tinham começo, meio e fim, mas exemplos de uso em diferentes circunstâncias, a partir de situações baseadas em possibilidades reais. À medida em que as situações se delineavam, fazíamos perguntas sobre detalhes que poderiam apontar pontos fortes e fracos do acesso e do uso. Dona Jussara tem celular ou usa o da filha? Sabe marcar o site para acessar de novo? Sabe tirar foto pelo celular? Ela sabe ler e escrever no celular? Sabe acessar vídeos do Youtube? Usa óculos ou aumenta as letras para ler na tela?

Os pontos fortes e fracos foram aparecendo com as próprias descrições dos processos, ou ações, dos usuários e de maneira fragmentada, sem seguir curvas regulares para cada usuário, divididas em etapas homogêneas. Em muitos casos, etapas eram puladas, passando-se do acesso à criação, voltando ao acesso, passando à consulta de serviços.

As ações, melhor que jornadas, dos usuários, acabaram fornecendo informações complementares às das PESSOAS. Ações e pessoas formaram conjuntos que se intercalavam.    

Nesta etapa de imersão no projeto, verificamos, em relação às ferramentas metodológicas utilizadas, que de um modo geral

  1. Os participantes do grupo de projeto preferiram trabalhar com pessoas reais, ao invés de pessoas idealizadas.
  2. Os participantes não aceitaram bem ferramentas metodológicas muito formais, talvez (realmente uma suposição) por criar uma relação de poder entre quem conhece e quem não conhece o processo de elaboração e desenvolvimento técnico de um site. Preferem falar e agir informalmente e a partir daí participar ativamente do processo de criação.
  3. A população de modo geral demanda e valoriza a ideação e o conteúdo produzidos localmente.
  4. A afirmação do conhecimento e sua criação localmente é indispensável para o sucesso do projeto.
  5. A distância cultural e de formação em relação aos integrantes locais da equipe de projeto, evidente em cada encontro, mas atenuada com o tempo, foi também um fator que ajudou a aproximação, na medida em que não tínhamos ideias pré-concebidas ou experiências passadas com cada um.

Assim, adaptamos três ferramentas de pesquisa, conceituação, personas e jornada do usuário ao contexto local. Não aplicamos outros métodos de pesquisa por consideramos que a abordagem coloquial dava bons resultados e as informações registradas foram suficientes para aquele momento do produto. Além disso, a ênfase demasiada em processos abstratos poderia diminuir o interesse dos integrantes, interessados em colocar logo mãos à obra e em começar a “ver” o produto.

 O relato, aqui resumido, de um corte da realização do produto, enfatiza que as metodologias de projeto precisam ser adaptadas a cada contexto, a cada universo humano, cultural, e eventualmente ser reinventadas, para gerar produtos legitimados pelos seu público, com processos em que os usuários se sintam agentes de seus próprios instrumentos digitais.

(Publicado em 5.1.23)